Eduardo Furbino
Poesia Quase Todo Dia
pantera comum
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pantera comum

um poema
certa vez (você se lembra?)
nós dois estávamos na mata
perto da roça onde morava seu pai
e avistamos ali a primeira onça da
nossa infância e ela meu deus era bela
e terrível mas ninguém nos acreditou

não te vejo mais
não lembro mais do seu nome (perdoa)
eu era apenas isso mesmo um menino e
continuo sendo exatamente um homem
burro como meus outros homens

meus pés se parecem e muito
com os pés dos que vieram antes
porque pisam suas estradas
porque minas é agora uma memória distante
e quando lembro de mim é como se olhasse
um mapa onde não houvesse nortes

escrevo cada vez mais sobre
o que deixei para trás e isso parece
uma tentativa de arrancar fora a culpa
por ter fugido de tudo e abandonado
todo mundo num estado da federação
onde nada mais voltará a ser sólido
onde a física serve para dispor
no espaço todos e tantos corpos

(eu matei muita gente me desculpe
mas matei porque quis então
talvez não tenha culpa mas sim
um monte de mérito por ter saído
vivo impune e fabulosamente colorido)  

rezo toda as noites a nossa senhora
na esperança de que ela ouça melhor do que lê
porque o que escrevo é prece para outro deus
e não deve castigar os olhos de uma mãe
o que escrevo é um grande felino
prestes a desaprender as jaulas

a onça teria sido tão terrível se
eu não amasse a vida mais do que
amo quinze pares de dentes?

hoje eu diria que entre a boca e a vida
há pouca ou nenhuma diferença
e certamente a desafiaria mas não por
imprudência ou coragem nem por
ter assistido a todos aqueles
programas dublados do animal planet

hoje me enfiaria em sua boca
do mesmo modo que enfio na minha
tanta gente que igualmente me mete medo
só pelo desejo de provar seu gosto
e pela vontade de saber se um dia
haverá quem sacie minha fome sem que
com isso eu me condene ao comê-lo

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