suas amizades de baixa manutenção estão matando as tartarugas
individualismo, crise climática e aquele amigo para quem você nunca liga
internauta, estou indignado! semana passada, vi circular por aí um post (meme? hoje em dia, qual é mesmo a diferença?) onde estava escrito algo como “amo minhas amizades de baixa manutenção”. li, refleti, e fiquei incrédulo.
nos meus trinta e cinco anos nessa indústria vital chamada vida — na qual fui conscrito a contragosto —, ainda não tinha me deparado com o conceito de “amizade de baixa manutenção”, algo que parece ter sido retirado de uma cartilha da Enel1. a definição é a seguinte: uma amizade que requer esforço mínimo das partes para existir, sobrevivendo às intempéries do tempo não por ser forte o bastante, mas sim por ninguém esperar absolutamente nada dela.
digo, como posso esperar algo de alguém que não vejo, com quem não falo, cuja existência está sempre dois, seis, doze ou mais meses defasada?
o conceito se enfiou safadamente no discurso moderno e já estropiado das relações líquidas, normalizando o não interesse pela vida de alguém por um longo período e a crença de que “é assim mesmo, o mundo é corrido, amo a leveza da nossa amizade”.
me chame de conservador (não me chame), mas entendo que amizades não foram feitas para ser leves, mas reais. tal qual a realidade, elas flutuam, mudam, se reconfiguram — mas algo que não fazem é permanecer estáticas, congeladas no tempo, à espera de se lembrarem delas para darem o ar da graça.
tenho amigos com os quais falo com muita frequência, a quem sempre pergunto sobre o dia, a família, a arte, o trabalho. já outros, vejo uma vez a cada um ou dois anos. gosto desses amigos distantes, gosto de tomar vinho com eles vez ou outra, pôr o papo em dia, mas não considero que nossa amizade é retomada do ponto onde parou quando nos encontramos, como uma saudosa fita VHS (se você nunca rebobinou uma, sorte a sua). “é como se nada tivesse mudado nesse tempo todo”, dizia o post, mas mudou, sim, e só você não soube, ou não quis saber.
prefiro chamar meu distanciamento pelos seus muitos nomes já existentes, sem inventar novos: mudanças nas prioridades, falta de interesse, perda do desejo de estar junto.
não faço juízo de valor sobre as transformações pelas quais uma amizade passa, sejam elas quais forem. eu precisaria estar (mais) fora de mim para imaginar que amizades devam permanecer imutáveis ou, ainda pior, cada vez mais intensas. mas julgo com toda a intensidade do meu sol em virgem a tentativa de normalizar o desinteresse pela companhia alheia, essa redução tosca da experiência humana à categoria de um aparelho que só precisa de um pouquinho de óleo vez ou outra para funcionar corretamente.
é preciso enxergar com os olhos da realidade os efeitos das forças externas e internas a nós no nosso ritmo de vida, naquilo que consideramos essencial e nas conexões que escolhemos manter. não fazer isso é delegar à cultura da nossa época, à tecnologia, ao desenho das cidades, ao capital e a tantos outros fatores o poder de decidir como viveremos e pelo que vale a pena vivermos.
passei um tempo pensando na origem das “amizades de baixa manutenção” e no porquê de elas terem me gerado tamanho incômodo. hoje, almoçando com uma amiga próxima, conversávamos sobre outra noção estapafúrdia (a de “ser feliz sozinho”), quando rasguei meu diploma de cientista social e, sem a cortesia de um aviso prévio, teorizei o seguinte:
a ideia de individualidade só se tornou possível em uma época muito recente, lá por volta de 10.000 a.C., quando nossa espécie abandonou o nomadismo e pôde se estabelecer de forma sedentária em um determinado local geográfico, graças ao desenvolvimento de técnicas agrícolas e da domesticação de plantas e animais. só então, quando domamos a natureza externa, a semente da tentativa de individualizar e domar nossa natureza interna foi plantada em nós.
minha teoria de que a individualidade enquanto fenômeno social nasceu naquele momento do nosso processo civilizatório é muito facilmente explicada pela seguinte anedota:
imagine um ser humano neolítico nômade tendo a brilhante ideia de se desgarrar de seu clã para poder “ser feliz sozinho” (“conquistar sua independência” ou qualquer outra bobagem dessas), só para ser abocanhado por um tigre-dente-de-sabre do qual não consegue se defender por conta própria porque, convenhamos, nem mesmo um ser humano contemporâneo conseguiria se defender dele sem o uso de armas modernas.
enquanto comia um ótimo cuscuz marroquino no quilinho perto de casa, teorizava com minha amiga que o sedentarismo e a segurança proporcionada por suas benesses (habitações mais robustas, a divisão complexa do trabalho social, o aumento da produtividade, etc.) foi diretamente responsável pela individualização da vida humana na sua forma mais tacanha, aquela tão fetichizada pelo neoliberalismo, muitas vezes chamada de “liberdade” ou pelo nome que usaremos daqui adiante: individualismo, o tataravô das amizades de baixa manutenção. da exacerbação desse individualismo, segundo a credibilíssima teoria aqui apresentada, deriva o enfraquecimento dos elos sociais, tanto na sua origem quanto no tempo presente.
o individualismo é curioso porque só é possível se for alicerçado na coletividade: por exemplo, é impossível sustentar-se sozinho sem os frutos do trabalho alheio (alimentos, roupas, energia elétrica nos lugares não atendidos pela Enel); e, mesmo que alguém consiga ser 100% independente de outros seres humanos durante toda a vida, jamais conseguirá se desligar da coletividade da natureza, de seus nutrientes, ar, água e tanto mais.
o que nos traz a 2025 e à seguinte notícia: as tartarugas-verdes (nome científico: Chelonia mydas), habitantes da Grande Barreira de Corais australiana, estão correndo risco de extinção devido às mudanças climáticas.
“com um aumento previsto da temperatura média global de 2,6 graus em 2100, muitas populações de tartarugas marinhas correm o risco de sofrer uma alta mortalidade de seus ovos e de ter uma descendência exclusivamente feminina”, afirmam a endocrinologista Camryn Allen e o biólogo Michael Jensen em uma reportagem do El País.
isso porque, explica o jornal, “o sexo dos exemplares dessa espécie é determinado fundamentalmente pela temperatura durante a incubação de seus ovos na areia”. com o planeta mais quente, há cada vez mais fêmeas e um número decrescente de machos, levando a um desbalanço demográfico que atinge diretamente a saúde reprodutiva da espécie, conduzindo-a, grau após grau, à extinção.
é curioso pensar que apenas 12.000 anos separam o colapso dessa espécie (e de tantas outras, incluindo a nossa) do surgimento das características socioambientais que o propiciaram.
é um exercício interessante traçar a origem do consumismo que nos aflige até o nascimento do individualismo, assim como a origem do avanço incontrolável da globalização, do acúmulo antiético de capital, do crescimento desenfreado e danoso da indústria e do agronegócio — bem como da concentração das riquezas geradas por eles nas mãos de poucos… indivíduos.
(um detalhe: estamos há 300.000 anos neste planeta e levamos menos de 5% desse tempo para mandar tudo às cucuias. esse talvez seja o feito mais eficiente da nossa espécie. meritocracia pura.)
pois bem, o tataravô das amizades de baixa manutenção aparentemente andou bastante ocupado nos últimos milênios, guiando-nos mansamente pelas veredas tranquilas da nossa autodestruição. após um longo tempo sendo tão requisitado, é de se imaginar que ande muito cansado e o cansaço talvez o impeça de dar atenção a outras coisas além de si mesmo, algo que nunca foi seu forte.
por isso, e também porque já está na minha hora, encerro com um apelo: ponha a mão na consciência e ajude esse senhor a se aposentar. sempre que tiver tempo e, principalmente, quando julgar não ter tempo, ligue para seus amigos. celebre outras pessoas, escute-as e fale com elas sem nenhum motivo aparente além do prazer de conversar. queime um banco. salve uma tartaruga.
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Essa coisa de “amizade de baixa manutenção” também nunca me desceu muito bem. Sempre considerei uma desculpa para não nutrir mais laços verdadeiros com as pessoas para não ter esse esforço.
anotei aqui num bloquinho "mandar tudo às cucuias" pra usar numa frase sempre que possível