sento à minha mesa de trabalho. é cedo. é cedo há um tempo, desde que me convenci que não era tarde demais. a paisagem que se abre à minha frente é o emaranhado de prédios e nuvens carregadas ao qual já me acostumei. em são paulo, as nuvens estão sempre a um disparo de distância de nos estragar o dia.
preciso escrever, mas a inspiração não vem. antes, ela surgia a qualquer momento com um lampejo, os versos brotando na cabeça mais rápido que eu conseguia registrá-los no papel. agora, o arranjo é outro: espero e nada vem. preciso criar armadilhas para capturá-la. invento musas.
nos últimos meses, escrevi bastante para três personagens: ana, andré e cecília. destinatários inspirados em pessoas que amo ou que já amei, mas também maiores que aquelas que lhes deram vida. o exercício de escrever para pessoas específicas é novo e ainda estou me adaptando a ele, mas confesso que gosto muito. eu, que sempre odiei poesia epistolar, até que (assim, de repente!) não mais. agora, me vejo refém das conversas com essas pessoas inventadas.
os textos dirigidos a cada uma delas são diferentes na temática e na forma:
andré é o amigo a quem faço confissões;
ana é uma força da natureza que temo o mesmo tanto que admiro;
cecília é alguém com quem busco, com dificuldade, me reconciliar.
digo eu escrevo, eu falo, etc., mas nem sempre sou eu de verdade. às vezes, o eu-lírico tem minha identidade, mas na maior parte do tempo ele pede para falar por si mesmo.
isso dito, preciso confessar que não acredito em musas. sobre esse assunto, gosto muito da frase de isabel allende:
compareça, compareça, compareça [à escrita] e, após um tempo, a musa também comparecerá. se não a convidar, eventualmente ela simplesmente vai aparecer.
essa interpretação possível da relação escrita-inspiração indica que a musa se encontra na ação criativa e não fora dela. é nisso que acredito, porque tem sido essa, desde sempre, minha relação com a literatura que produzo. é o ato de me sentar à mesa, abrir o caderno e começar a escrever o que faz surgir não só a escrita, mas também a inspiração.
às vezes, quando estou sem um caderno à mão, sento na minha própria cabeça e começo a escrever o texto mentalmente, frase após frase. edito-o dentro ali dentro, mudo a ordem das coisas, e quando sinto que ficou grande demais para memorizá-lo, corro para tentar encontrar papel ou teclado que me permita registrá-lo para a posteridade (e para você).
é por isso que, diante do bloqueio criativo que mencionei anteriormente, recorri à personificação de determinados temas em três personagens, de forma a facilitar o acesso a eles e tornar a escrita mais fluida. as musas são, para mim, ferramentas de trabalho. jamais o trabalho em si; jamais o motivo pelo qual o faço.
a época da perda
muito do que escrevi no último ano girou em torno da temática da perda: um amor que acabou; uma vida que chegou ao fim; uma época que se encerrou. acredito que seja um tema óbvio, diante de acontecimentos recentes na minha vida que não abordarei aqui agora, mas penso que seja ainda mais óbvio quando olhamos para além das paredes de casa e pensamos no estado do mundo que habitamos.
longe de mim dizer que francis fukuyama estava certo ao proclamar o “fim da história”, pintando-o com as cores do neoliberalismo, mas não consigo deixar de me apropriar dessa expressão para falar sobre a nossa época. tudo parece estar colapsando (política, emocional ou climaticamente). tudo parece estar a um passo do fim. minha geração, os millennials, sofre as dores de um futuro que nos foi prometido e agora nos é negado pelas condições em que aqueles que vieram antes de nós deixaram o mundo.
é claro que tenho plena consciência que a tristeza dos millennials é um problema não existente e, das dores, a mais estúpidas. ainda assim, é uma dor e aprendi que toda dor merece atenção. que devemos ser generosos com os problemas que nos afligem, por menores que sejam, para que se tornem dignos da nossa atenção. caso contrário, arriscamos nos tornar espectadores de nós.
enfim… estou fugindo do ponto. e o ponto é exatamente o final: essa sensação de que estamos nos aproximando dele — algo abordado à exaustão em muitos filmes, notícias, séries e músicas recentes — faz com que sintamos a dor da perda do nosso paraíso, dessa terra, dos nossos sonhos.
é por isso que nomeei essa edição de “a invenção de musas na época da perda”. não acho que seja coincidência que, logo agora, eu tenha inventando pessoas às quais me dirigir em poemas. essas pessoas não estão sujeitas ao colapso que me aflige; elas podem perdurar e ter uma boa vida literária (ao menos enquanto eu viver).
isso é belo e me traz alguma paz, me ajudando a pensar que a complexidade da minha história, as múltiplas versões do que me acontece, será devidamente registrada nas cartas-poemas que envio aos meus amigos imaginários. e que são lidos pelos meus amigos reais.
“eu sou uma garota safada”
a frase acima abre o primeiro poema que escrevi para andré:
andré, eu sou uma garota safada não me cabe no olho a imagem de um único homem quando exploro seus corpos não penso na liberação de nada que há neles é, pelo contrário, na minha prisão que penso em ser segurado pelos pulsos e implorar que acabe sabendo, andré, que não quero que acabe sabendo que tudo no mundo é uma distração e o que realmente importa não sou eu quem sabe são eles que vão me mostrar com as mãos
andré foi o primeiro a surgir, numa época em que conheci o amigo que lhe deu o nome. acho que nasceu da necessidade de envergar ao máximo o diálogo estabelecido com esse amigo, para ver qual era seu ponto de quebra. para o andré-musa eu dizia aquilo que acreditava não poder dizer ao andré-amigo.
felizmente, tudo o que falei em poemas consegui também espaço para falar em palavras e a vida de andré enquanto musa acabou sendo um tanto curta.
para andré, escrevi sobre sexo, desejo e minha interpretação mais cínica do amor.
a invenção de ana
a série de textos mais longa até agora é a que escrevo para ana, chamada anapoeia (ou “a invenção de ana”, em grego). tem hoje onze poemas e deve se tornar um pequeno livro no futuro, assim que eu souber que a primeira fase do nosso relacionamento chegou ao fim.
ana é inspirada em alguém por quem fui apaixonado há alguns anos, paixão essa que se transformou em uma amizade fundamental para a minha existência.
com a ana-amiga divido sonhos, paixões literárias e modos de ver o mundo. já a ana-musa é um reflexo da visão que eu tinha dessa pessoa, enquanto fui apaixonado por ela: uma mulher que irradia poder e beleza, por quem meus joelhos dobram, flexionados pelo peso da admiração.
ana espero ser destruído não como eles pensam sim como você quer quero acordar um dia em frangalhos cada parte de mim varrida para debaixo de um tapete diferentes tapetes em muitos e diferentes lugares espero não precisar me explicar você sabe das coisas muito bem você entende mais do que veem ana quando digo que quero acabar sei que você compreende que não falo do fim espero ser aniquilado por um belo começo
os poemas para ana trazem imagens e temas inusitados (lembro de quando a comparei a uma arma medieval usada para destruir muros, porque gostava da sonoridade da palavra aríete). a maior parte dos textos fala de amor e de relacionamentos, mas há alguns mais existencialistas, como o que compartilho acima, que são meus preferidos.
a reconciliação com cecília
na newsletter de hoje, quis dividir com você os três textos que escrevi para cecília. ela é a única das musas que não toma seu nome de empréstimo de alguém que conheço, embora sua personalidade sim.
os dois textos mais longos que envio abaixo faziam parte do livro no qual estou trabalhando (título de trabalho: entre amigas), até que decidi não nomear personagens ali e excluí-los dele.
para cecília, escrevo textos que questionam a dinâmica do relacionamento do eu-lírico com ela, revisitando acontecimentos ou requentando conversas passadas. tento fazer isso de forma equilibrada, sem apontar culpados pelas perdas que ambos sofreram, até porque não acredito na culpa e tento, ao máximo, não mobilizá-la nos meus textos.
cecília pode não ter recebido tantas cartas quanto ana, mas aquelas enviadas a ela apontam para a imensidão que é o relacionamento entre duas pessoas. certa vez, em um conto, escrevi que “a memória é um monumento no qual pixamos nossas mágoas”. acho que os textos para ela carregam muito dessa ideia, mas funcionam como agente de limpeza a remover o pixo e a ressignificar o objeto sobre o qual ele estava (algo que eu nunca faria na vida real. máximo respeito aos pixadores).
espero que as conversas com cecília, que divido aqui, se façam também conversas contigo. preciso avisar que, às vezes, ela não escuta, mas tenho para mim que cecília jamais poderia ouvir as palavras que eu mesmo nunca quis dizer.
até mais!
estou estupendo cecília nunca me senti melhor meus cabelos voltaram a ter vida não estou fazendo nenhum tratamento xampu não é tratamento cecília tenho tido de novo motivos para falar sobre meus cabelos outro dia encontrei na rua um pássaro morto mas não chorei em outros tempos seria diferente você sabe dessa vez recolhi a carcaça botei de lado na grama só me veio o choro dias depois mas não pelo pássaro
cecília as ruas estão cheias de arapucas assim como estão os corpos as caixas torácicas prendendo tudo lá dentro o rabinho de um sentimento veja cecília balançando peito afora uma graça a avenida perto de casa tem seis faixas contei todas elas agorinha mesmo enquanto atravessava com muita pressa ainda assim vou chegar atrasado estou tentando começar uma conversa você não se parece em nada com o que imaginei se junto seus olhos não vejo coisa nenhuma queria saber o que seus cílios pensam sua boca é feita para falar mas cecília sejamos criativos talvez seja tarde demais para voltar sozinho sua sombra é um oásis rodeado por meia dúzia de faixas me deito nele por um minuto e você sente medo dos carros não sei o que faço não estou realmente aqui levanto e vamos você está brava o sol lambe suas costas e fico abismado ao reparar que é possível sentir tanta raiva de um monte de fogo eu lambo suas costas entendo o sol agora adquiro um conhecimento secreto e sublime que nenhum astronauta americano jamais terá se é para terminar que termine logo cecília odeio esperar eu choro em aeroportos sem garantia de que aquelas pessoas vão voltar eu estava mentindo fique aí ou se você não me obedecer porque não vai não funciona assim não me confunda nunca com uma estrela anã é só o que peço grave bem não vou repetir se você olhar para mim assim do meio da rua não vou te cegar nem nada olha forte mas é capaz que eu traga à luz outro segredo escondido entre seus anéis ou sua órbita que eu me convença que estou diante de um novo amor ou novo tipo de medo se houver cecília qualquer diferença
não se dorme em sofás cecília escuta estofado de poliuretano precede colapso o visco do encosto me faz lembrar do medo que sinto de tudo … cecília você tem razão enrosca tua mão no que sinto por dentro acha minha alma em migalhas eu um restinho você todo o resto me parte em pedaços me carrega em saquinhos ziploc por favor me organiza corta o começo joga fora corta o fim joga fora conserva o meio feito se faz com pão de forma sem casca essa coisa indefensável indefesa inofensiva feito o que sou cecília eu
o que você acha?
estou pensando em mudar o dia de envio das newsletters, mas antes de decidir queria sua opinião. então, que tal responder…
uma música
passei a última semana ouvindo tem problema não no repeat, música de um dos meus artistas contemporâneos favoritos, o martins. dá play aí embaixo e me diz o que acha? será que sou o único obcecado? espero que curta!
ah, você deve ter notado que esta news tá um pouco diferente visualmente, né? estou testando coisas novas, buscando melhores formas de continuar nossas conversas. muitas novidades vão surgir nas próximas semanas e gostaria muito de saber o que você está achando, onde pensa que estou acertando e o que acredita que eu deveria fazer diferente. então, fale. a qualquer momento. comigo ou a sós. mas não deixe de falar :)
a arte de capa desta edição é de karl wiener (1901-1949), um pintor austríaco.
Perdi as contas de quantas vezes li este aqui! Meu predileto é o primeiro texto de reconciliação com Cecília. Sensacional!!!❤️😘