uma separação é também um acontecimento cómico
a breve história de Maria de Lourdes & Altino
hoje fique com vontade de enviar a você um conto que nasceu ao contrário: escrevi o último parágrafo e fui voltando até o primeiro, tateando a história de um casal, Maria de Lourdes e Altino, e o que lhes aconteceu para chegarem ao final que eu havia imaginado.
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venho dos contos. eles foram, durante muito tempo, minha principal forma de expressão literária. apesar disso, desde 2016 me dedico quase exclusivamente à poesia (tirando o pequeno período em que trabalhei em uma complexa novela espacial, mas isso fica para outra newsletter).
espero que a história de desencanto que contarei aqui ressoe em você de forma positiva e que, a partir dela, você consiga entender um pouco melhor os acontecimentos cósmicos que te rodeiam.
ótima semana!
uma separação é também um acontecimento cómico
casaram-se em Arroios, correndo contra o tempo, numa noite clara em que brilhavam no céu estrelas tão antigas quanto as de agora. as famílias não queriam, mas nada podiam fazer para livrá-los do destino. quem pode? Maria de Lourdes e Altino, os nomes, duas gentes que sabiam pouco de si e menos do mundo e por isso — talvez precisamente por isso — se encontraram dentre todos. o amor era vício, vontade nascida da necessidade, pensavam, e viria quando houvesse de vir. haviam se casado pela necessidade maior: os dois dormiram sem dormir muitas noites, antes do altar. Maria de Lourdes engravidou — o escândalo.
em Arroios tudo era um escândalo à espera de acontecer: a mulher embuchada, o gado sumido, um espírito morto colado na pele de um vivo. Altino decidira muito cedo não seguir os passos dos que vieram antes dele, por isso casou. a Maria de Lourdes foram ofertadas menos escolhas, como costume. em Arroios e noutras cidades, uma mulher era capaz de carregar largos fardos, mas nunca desfazer-se deles. Altino não tinha essa ciência, mas Maria de Lourdes sim. enxergava o altar não como a realização de um sonho, mas como o cumprimento da pena. em Altino, via o portador das más notícias, mas não tanto um carrasco. e escolhia o que podia: criar vida e não deixar-se consumir por ela.
as famílias não lhes queriam porque Altino não era o esperado: para uma, fardo imprestável avesso ao trabalho; para outra, origem das faltas que acompanham a miséria. não era, ele mesmo, miserável, embora fosse capaz de causar a miséria pela falta de esforço. gostava de pinga e de bar, como esperado, e fugia das tarefas mais complexas. Altino tinha, sim, prometido não ser como os seus e cumpria a promessa, mas ao que não herdou da ausência do pai — morto a tiros em Tantameira — somaram-se as falhas que aquele não tinha. o trabalho, ele sentia, era uma forma pouco elegante de se perder no tempo. do que vale o esforço, se estamos todos condenados? não sabia elaborar mais que isso. não precisava.
quando Laércio nasceu, pôs nele o nome do pai, numa tentativa de aplacar os ânimos da família de onde saíra. o pai, Laércio velho, ainda era tido com respeito por todos, a despeito do abandono. Laércio novo foi recebido com júbilo e, por um tempo, uniu as famílias e encurtou a distância entre Maria de Lourdes e Altino. uma criança, no entanto, possui poderes limitados e sua graça desaparece com o tempo e com o crescimento. assim aconteceu com Laércio novo e, aos seus oito anos, os problemas reapareceram. as famílias tinham muitas opiniões sobre seu futuro e Altino cada vez mais se cansava das decisões dos outros, diante da sua inércia. disse a Maria de Lourdes que talvez fosse vez de saírem de Arroios, ir rumo a uma cidade maior, talvez a Capital. Maria de Lourdes encarou as palavras como más notícias empunhadas por um carrasco recém-empossado.
decidiu-se que iriam. ele. e assim foram os três, numa noite igual àquela em que se casaram, o céu estrelado e claro, Vênus podendo ser vista tão fácil e Saturno, poderoso, preso em algum ponto ao redor do Sol. Altino pensava que os astros lhe sorriam e mostravam o que fazer, embora disso não soubesse dizer mais que isso. acreditar em poderes infinitos era uma dádiva à alma, entendia, que não precisava ser explicada.
viveram em Tantameira por um tempo, até conseguirem transporte para a Capital. ali, Altino arranjou trabalho, porque suas escolhas exigiam esforço. Maria de Lourdes criava Laércio e costurava para fora. viveram muito tempo assim. Laércio cresceu. estudava, não trabalhava. Altino queria que seu filho tivesse um destino que não dependesse das mãos, mas da cabeça. a Maria de Lourdes isso fazia sentido, queria o melhor para o filho e, naquele mundo, o melhor parecia ser o fim do corpo para que servisse de adubo ao pensamento.
Laércio, aos dezoito, entrou para a faculdade. as famílias estranharam, mas Maria de Lourdes e Altino sabiam que era boa coisa. formou-se cinco anos depois, com destaque. doutor Laércio. então, motivo de orgulho. as famílias respeitavam doutores.
casou-se dois anos depois, teve filhos três a mais. Altino continuava a trabalhar braço a braço para sustentar a casa que os netos vinham visitar. era novo e tinha netos. havia vencido o pai. Maria de Lourdes não costurava mais, trabalhava num hotel perto do rio, escrevia cartas para pessoas passadas em seu tempo livre. não as enviava nunca. começou a crescer dentro de si, naquela época, a urgência de ter tudo o que havia abandonado, a vida paralela que parecia ter seguido acontecendo à medida que ela se acostumava à ideia de sua sina.
certo dia, acordou diferente. nos olhos pretos brilhava uma chama oculta. Altino percebeu semanas depois, quando a chama tinha se tornado um incêndio. Maria de Lourdes não conseguia mais controlá-lo, nem queria. Altino lhe perguntou o que se passava. na dúvida, mentiu. mentiu mais e mais e se perdeu nas mentiras que contava para enfeitar o corpo, que queria viver, mas não sabia como. fez da mentira um hábito, viveu assim por meses, sonhando com praias, com o Sol, com rios que desembocavam entre suas pernas e homens altos e escuros que lhe raptavam, apenas para lhe libertar numa fronteira desconhecida.
ela não queria o rapto, não queria amarras. partir, pensou, só nós podemos fazer a nós. tomou, pois, a mala sob o braço e anunciou a Altino que partiria, que não era mais feliz desde há muito e não sabia, ali, como tornar a ser. iria rumo a outra cidade e futuro, onde precisassem dela, mas não a necessitassem. onde a necessidade fosse a medida do desejo.
quando Altino lhe perguntou o porquê, Maria de Lourdes disse a verdade. não era mais seu hábito dizer a verdade, mas isso a ninguém causou comoção. os ânimos, pouco exaltados ou nunca usados, o que fosse, ali não ajudavam em nada. o céu cheio de estrelas continuava acima, como nas noites antes em que tanto de novo lhes acontecera. nada parecia ter mudado, o mundo era ainda uma explosão nascida do escuro. uma separação, Altino pensou, era também apenas outro acontecimento cósmico: Saturno a se compadecer de velhos dedos, onde agora não havia mais nenhum anel.
uma música
a música que gostaria de indicar hoje é implorando, de badi assad e toquinho. instrumental e certeira. foi a que coloquei para tocar enquanto buscava inspiração para o texto dessa edição.
do podcast
aproveite para ouvir a a z, um episódio antigo do meu podcast que tem algumas conexões com o texto de hoje :)
Querido Eduardo, obrigada por dar vida à Maria de Lourdes. Obrigada, principalmente, por dar-lhe liberdade.