tudo o que eu queria te dizer sobre o início dos tempos
em que o gênesis é uma experiência de cocriação com o diabo
era para eu ter enviado esta newsletter no domingo, eu sei, mas as semanas continuam conturbadas por aqui e simplesmente não consegui encontrar um tema. me dei, então, um tempo para pensar. felizmente, hoje me veio uma ideia: voltando do almoço me dei conta que nas últimas semanas tinha escrito textos que se interconectavam e recontavam a história do gênesis bíblico sob diferentes pontos de vista, culminando em um questionamento sobre nossas origens e o destino iminente dos nossos apegos. nasceu, então, a edição de hoje: tudo o que eu queria te dizer sobre o início dos tempos.
i.
no tempo antes do tempo, deus em dúvida: os crio à minha imagem ou os imagino criaturas? mas se desconhecia o que via nos espelhos, como chamaria de seus rostos que ainda não via? ao fim do sexto dia, no barro molhado de águas fluviais esculpiu um vaso quebrado. chamou o vaso de primeira mãe; pôs dentro dele o que seria pecado; amou o pecado como se ama a um filho. esperou o dia em que as mãos do desejo cortariam seu destino com os cacos do vaso partido. esperou que o filho vivesse, antes que ele tivesse morrido.
ii.
explicar ao barro que dele será feito a primeira mulher dentro de doze horas. à costela que dela sairá, dias depois, o primeiro homem. a deus que não há sentido em pôr no mundo antes a dor e só então o corpo que a sente. em breve se revelará o pecado e a ele será dado o nome originário de todas as coisas: o medo de acidentalmente criar-se uma saída ao se tentar encontrar uma razão para ficar.
iii.
hoje me aconteceu algo terrível satã sibilou em segredo seu nome disse ter-se chamado saudade antes do início quando nada era tudo o que tinha e que será de novo chamado assim quando tudo for de novo nada
iv.
tem que ter sim tem que ter trovoadas separando o chão do céu tem que ter muito som barulho por nada gritar a plenos pulmões na rua augusta até que alguém me estenda a mão e me console silencie meus raios internos repare a quebra do tempo tripartido que me come a paz do rosto e a farinha dos ossos tem que ter sim é preciso muita calma porque se eu deixar cair meu sangue na rua são pedro vai ter muito trabalho para planejar um dilúvio que me lave do mundo
v.
pensar que perdemos o paraíso me faz temer esquecer quão perto pode estar sua longitude.
uma música
a música dessa semana é uma poesia de leminski ritmada por itamar assumpção, mas na voz de chico césar. um homem com sua dor é um dos meus poemas favoritos e a versão do chico faz dessa obra-prima algo transcendental.
ópios, édens, analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo o que me sobra
sofrer vai ser a minha última obra
bem católico, né? feito a culpa, o vinho cor e o vinho líquido, e a newsletter de hoje. até breve!