todos os bichos podem fugir, se lhes for dado tempo o bastante
em que conto sobre a infância, o amor, os sonhos e as fugas
oi, como estão as coisas?
a newsletter de hoje traz um conto curto chamado “Turmúlio”, o primeiro que escrevo sei lá eu em quantos anos. apesar de a poesia ser hoje minha principal forma de expressão, tenho andado com muita saudade da prosa (de onde venho, onde tudo começou).
espero que goste e, se gostar, que indique a newsletter a outras pessoas, me ajudando a fazê-la crescer. obrigado por estar aqui :)
Turmúlio
Turmúlio tinha noção de que a asa de uma xícara era a parte menos frágil da sua infância. não era bobo. mesmo assim, sabia que dele era esperado que passasse o indicador com cuidado pelo anel da asa (um contrassenso vocabular que vamos ignorar) e, com o máximo de delicadeza, levasse a xícara à boca em movimentos focados. sabia que muitos olhos o observavam, mesmo que nele não estivessem colados: o pai bufando, lendo o jornal; a mãe atarefada com a nova encomenda de bolos; a irmã menor alimentando o nariz com restos de comida. nenhum deles lhe prestava muita atenção e, bem por isso, era como se a vida fosse um palco sobre o qual constantemente estivesse, aguardando que recaísse sobre seus atos muito bem ensaiados os olhares alheios.
Turmúlio estudava, era esperto, tirava notas razoáveis. diziam à boca miúda na sala de cafés & cigarros dos professores que estava entre a seleta lista dos que não terminariam pior do que tinham começado. era uma lista realmente seleta, os professores não esperavam nada de ninguém. quando chegava o recreio, gostava de brincar com o Joca Boca-de-sino. se davam bem. o Joca tinha uma bola nova, à qual os meninos apelidaram de Marivalda, e sempre jogavam futebol ou queimada com ela. Turmúlio tinha muito medo de que o nome Marivalda tivesse sido dado à bola por um motivo específico que ele desconhecia, porque isso significaria que a bola, revestida de sentido, seria capaz de sofrer. para ele, as coisas que faziam sentido eram coisas também capazes de sentir. não era bobo.
aos fins de semana, pegava a bicicleta e passava na casa do Joca Boca-de-sino, que muitas vezes precisava convencer o pai a dispensá-lo de castigos recentes e deixá-lo sair. sempre funcionava. o pai do Joca não parecia se importar em tê-lo por perto, algo que despertava muito respeito em Turmúlio, pois o homem de ralos cabelos acaju lhe lembrava seu próprio pai. Joca pegava sua bicicleta e iam juntos coletar outros meninos pela vizinhança, até que um grupo de quatro ou seis tivesse se formado e fosse possível bolar um plano, jogar um jogo ou planejar a conquista de uma terra. o que Turmúlio mais gostava no Joca era do seu bom humor e de como seu rosto brilhava à luz do sol como se fosse feito do mais belo pedaço de ouro. sempre se perguntou se Joca também o via como algo precioso.
quando a noite caía, ele voltava para casa e jantava com os pais e a irmã na mesa laranja de madeira compensada. comia depressa. era tudo estranho. dormia em sua pequena cama e sonhava frequentemente com um anzol que lhe fisgava o umbigo, erguendo-o até a copa das árvores só para deixá-lo cair. não gostava nada desses sonhos, embora pensasse que deviam ter alguma utilidade, já que se repetiam tanto. ao acordar, tentava se lembrar de algo mais que anzóis, mas não conseguia. seus sonhos eram restritos à queda. certa vez, no caminho para a escola, Turmúlio se deparou com um casco de tartaruga vazio. não entendeu. deixou-o lá, mas levou consigo a dúvida, que formulou à professora como uma pergunta: “tartarugas podem fugir?”. a professora, depois de pensar um pouco, respondeu que todos os bichos podiam fugir, se lhes fosse dado tempo o bastante. curioso.
o Joca Boca-de-sino se mudou da cidade quando seu pai arranjou emprego em Belo Horizonte. foi um golpe e tanto em Turmúlio, logo nele, que não estava acostumado a golpes, pois o Joca sempre aparara todos aqueles que os outros meninos lhe desferiam. chorou por isso, mas não deixou que soubessem. tentou escrever ao Joca, mas as cartas nunca tiveram resposta. parece que a família não durou muito em Belo Horizonte e precisaram se mudar logo de lá, numa itinerância que foi a maior responsável por lhe encerrar a infância.
sua época de menino foi assim e foi também de outros jeitos, mas foi principalmente assim. quando chegou à adolescência, começou a sair com colegas diferentes. beijou certas bocas. gostou de muita gente. decorou nomes de lugares indizíveis, para que pudesse incluí-los como destinos possíveis para o amor nas cartinhas bobas que enviava a algumas das suas pequenas paixões, na esperança de conquistá-las. às vezes funcionava. Turmúlio era muito bom em fazer promessas.
quando fez dezoito anos, lhe obrigaram a servir no exército. voltou anos depois, apto para o trabalho. da época do exército, guardou somente o segundo amor, por um certo cabo que nunca mais voltou a ver. não tinha o endereço do homem para que pudesse enviar cartas a ele, descrevendo o quanto sentia saudade do seu corpo esguio, suado, de sua cara perigosa como rastro de pólvora, e anotando na última folha as belas sílabas de Reiquiavique. todas essas palavras estavam interditadas, o amor era uma ofensiva mal planejada. quando estourou a guerra, temeu que o cabo, ao contrário dele, tivesse sido convocado. passou muitas noites sem dormir, imaginando as enormes crateras causadas pelas bombas, antes mesmo que fossem exibidas no jornal da noite. eram mesmo muito grandes, requeriam muitas noites para serem imaginadas. muitas noites desejou morrer. não era bobo, mas sabia ser. nunca descobriu se, de fato, o homem objeto de sua paixão tinha sido convocado a usar seu belo corpo para dar cabo a outros corpos.
quando a guerra acabou, conheceu Lena e se casaram. viveram bem. tiveram três filhos e Turmúlio sempre gostou muito de todos, fato que se apresentou a ele como uma grata surpresa. esteve junto a Lena por quase trinta anos, até se separarem, alegando “diferenças irreconciliáveis”. eram, sem dúvida nenhuma, irreconciliáveis, mas não tão diferentes: ambos ainda buscavam aquilo que faltava. que bom. Turmúlio passou por um momento muito sombrio depois da separação, durante o qual voltou a sonhar com anzóis. não se lembrava mais dos sonhos da infância, logo, os novos sonhos não fizeram o menor sentido. uma pena. lembrou-se, no entanto, do que uma professora certa vez lhe dissera sobre fugas.
noite passada, bebendo cerveja sozinho num bar e observando os casais dançarem, questionou-se se já tinha se dado tempo o suficiente para fugir. deu um último gole na bebida, levantou-se e foi até o balcão, onde um rapaz insistente estivera lhe olhando como se avistasse a fome. naquela noite, Turmúlio não precisou sonhar. e se esqueceu de fugir.
como é a primeira vez que envio um conto aqui, queria saber o que acham de receber mais deles. responda esse e-mail me dizendo o que achou :)
uma música
no meu repeat esta semana está fogueira, da angela ro ro. é uma música de letra belíssima e melodia daquelas que atravessam o peito feito flecha. olhando em retrospecto, acho que a letra guarda muitas semelhanças com o conto que dividi com você hoje, escrito recentemente. isso aqui:
eu vivo a vida a vida inteira
a descobrir o que é o amor
leve pulsar do sol a me queimar
não penso ter a vida inteira
pra guiar meu coração
eu sei que a vida é passageira
e o amor que eu tenho não
a pintura que acompanha esta edição é “cotillons”, de albert aublet, um pintor francês que viveu entre 1851 e 1938.