percebi isto com o passar dos anos: todos nós temos os rostos uns dos outros. o semblante do vendedor de frutas que me lembra meu pai, a atendente da loja de sapatos que parece uma versão mais jovem de minha mãe — que só conheci por fotos —, esse cara do aplicativo que é igual àquele outro cara do aplicativo que certa vez visitei tarde da noite, numa rua à qual meus amigos me aconselharam a não ir.
a semelhança às vezes se deve aos ossos: os contornos do rosto que lembram outros, as quinas de suas maçãs se projetando à frente, ameaçadoramente, como um fruto do éden. outras vezes, a semelhança se deve ao que não está mais lá: o queixo ausente, a barba falhada, os parcos fios de cabelo das sobrancelhas, que muito as fazem se assemelhar às de maria eulália, a garota por quem tive uma queda na época terrível em que frequentei a 3ª série B e que gritou comigo quando descobriu que, ao contrário do que dissera minutos antes, eu não tinha a menor ideia do que fazer numa quadra de vôlei.
e há, ainda, a semelhança que é uma vontade de enxergar o que nunca esteve ali para ser visto. lembro que, diante de uma dessas crises de amores loucas que nos acometem nas épocas de paz, vi nos olhos de uma mulher que conheci no bar o olhar de uma ex nunca superada de anos atrás. e decidi então, naquele momento, que beijá-la seria perigoso demais — motivo pelo qual saímos por três semanas, até eu desaparecer após dar uma desculpa da qual não me lembro, mas que, como todas as outras desculpas, foi apenas um pretexto para a covardia.
digo que temos os rostos uns dos outros não de maneira leviana ou poética, mas porque realmente acredito nisso. cheguei a essa conclusão enquanto coava um café e adicionava mais pessoas à grande abertura de os normais que é a minha vida.
essas semelhanças todas sugerem que a natureza atingiu o limite de rostos disponíveis e encontra-se numa baita crise de criatividade. somos filhos de uma inescapável diversidade, pois. o excessivo individualismo contemporâneo cai por terra quando pensamos que não somos muito mais do que reconfigurações parecidas de peças de segunda mão usadas por todos.
o cara da rua de alta periculosidade, inclusive, era muito semelhante também a outro cara, de menor perigo, com quem estudei na faculdade e por quem não nutri nenhum desejo do qual minha consciência tenha tomado nota, mas sobre quem, pelo que parece, o inconsciente escreveu um longo livro de memórias. e talvez por essa familiaridade eu tenha me sentido mais à vontade do que meus amigos para ir de encontro a ele numa noite de quinta-feira (e também devido a um descomedido tesão, mas sobre isso não vamos falar agora).
diante desses pensamentos, enquanto tomo meu café, me questiono quantas vezes encarei meus medos de frente porque havia algo neles estranhamente familiar. quantas vezes o abismo olhou para mim e me chamou de irmão, de filho, de querido. e quantas vezes, ao atender seu chamado, me joguei nele só para me dar conta de que não ia ao encontro do fim — e que para baixo também se voa.
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