o primeiro estágio de um machucado é carne rasgada e sangue.
o primeiro sinal de que está sarando é o aparecimento da casquinha da ferida: marrom, dura feito terra compactada.
a certeza de que tudo voltou a ser como antes vem quando a casca cai e a pele — lisinha e rosada, feito a de um bebê — fica exposta ao mundo, ali onde antes havia um corte, um ralado, algo assim.
para o corpo, o normal é ser de novo indefeso feito uma criança. tomo essa estratégia da pele como uma lição.
nesta época do ano, chove todos os dias, tanto porque é verão quanto porque o mundo está colapsando num cataclisma climático que me deixa sempre esperando o pior das estações.
acordo bem cedo, como sempre faço, e logo vem a fome. lembro que não tenho nada para comer em casa e surge a vontade de ir à padaria da rua maria antônia, pedir um coado, um pão caro, e me sentar para escrever este texto, mas a chuva adia meus planos. só saio depois de enrolar muito na cama; de perguntar à alexa, múltiplas vezes, quando a água vai parar de cair; e de me convencer que há água o suficiente no meu mapa astral para que me sinta à vontade encharcado.
a consolação, onde moro, é linda na chuva porque se parece menos com a consolação. é uma versão lavada da consolação e descubro que isso me agrada, mesmo eu tendo me mudado para cá por causa da sua sujeira, mesmo vivendo aqui precisamente porque estou atrás de barulho e gritos de gente bêbada e que, cada vez mais, o som dos carros me pareça o pipiar de belos pássaros tropicais.
(acho que gosto da consolação molhada porque parece outra versão da mesma história. acho que gosto de todas as histórias que os lugares têm para me contar, todos os seus rostos, possibilidades, memórias.)
quando cruzo a larga rua que dá nome ao bairro, costumo pensar na sorte que tenho de presenciar a história passando por mim: a cada dia, milhares de carros descem e sobem por ela, carregando gente que vive essa cidade da mesma forma que eu, que escreve suas trajetórias no aglomerado maior de histórias a que chamamos uma época.
quando cruzo a rua, imagino quantas vezes ela foi atravessada no passado por pessoas feito eu — insuspeitas, limitadas — que viam nela os carros, os cavalos, as outras pessoas, e pensavam: estou no coração do tempo, tudo acontece aqui e agora. estou compartilhando um momento com tantos outros que, assim como eu, não fazem ideia do que está por vir ou do que já está aqui; ou pensavam: viver é atravessar uma rua sem saber se chegaremos inteiros ao outro lado para contá-lo.
tenho uma relação de amor e ódio com a padaria onde sempre vou para escrever e tomar meu café. amor porque é a padaria que escolhi para mim e sou muito afeiçoado às coisas que escolho como minhas; ódio porque nada nela é bom de verdade, tudo é muito caro, mas as pessoas me olham como se me conhecessem há anos e me cumprimentam com um sorriso e isso é o suficiente para agradar a quem vive sozinho em são paulo. enfim…
sento na mesa da qual gosto, peço o de sempre (pão de queijo, um coado) e começo a rascunhar o que seria originalmente esse texto: uma tentativa de condensar, em estrofes, minha relação com a vida depois do longo e tenso período em que cortamos relações. percebo que é impossível: o poema que escrevo fala de temas muito vastos, como a violência, a falta, e só o que quero é datilografar a história simples de um homem que deseja contar três das suas verdades.
pois bem…
a primeira é que quando decido falar da vida e começo abordando um ferimento e sua casca, talvez seja porque, por muito tempo, pensei na experiência de estar vivo como a extensão de uma ferida: chegamos ao mundo fazendo parte de um rito de violência — filhos de uma penetração, órfãos de uma expulsão forçada — e, dali para a frente, tudo possui sua própria carga de dor: as faltas, os amores, as perdas, etc. mas essa ideia não me serve mais.
serviu durante muito tempo (é o mito fundador do catolicismo, de onde venho, e a razão de ser do budismo, para onde fui), mas algo mudou em mim nos últimos anos. descobri a sede e descobri a pressa de saciá-la. percebi que não se faz isso bebendo o doce veneno da condescendência, mas sim a água por vezes amarga do desejo, onde então me refugio.
a segunda verdade é que não é que eu tenha passado a entender a vida como a antítese do sofrimento (felicidade pura?). é só que não vejo mais a necessidade de escapar do meu sofrimento. enxergo nele a beleza intrínseca a tudo o que vive. mais importante que isso: desejo desesperadamente me unir à beleza de tudo o que vive. para isso, não posso rejeitar suas diferentes formas.
no budismo, somos ensinado que a vida é sofrimento (dukkha) e aprendemos técnicas para afastá-lo. todas giram em torno da mesma ideia: afastar o sofrimento é afastá-lo da nossa mente, ou a nossa mente dele. viver passa a ser, então, um constante e crescente desapegar-se da realidade, enquanto nos encaminhamos ao ideal da felicidade plena — a ausência de sentidos e apegos, o nirvana. é uma bela filosofia, mas, sendo bem sincero, é uma filosofia terrível. a mim parece que a vitória da mente sobre o corpo é a pior das derrotas. eu não gostaria de viver no mundo que minha consciência cria. já há um mundo que me convida a vivê-lo e me parece, no mínimo, rude rejeitar o convite.
minha terceira verdade é que, quando me pego temendo a morte, não me vejo temendo a morte, mas sim a impossibilidade de viver um novo dia.
essa constatação me deixa sempre com um sorriso no rosto. é como se, no fim das contas, meu pior inimigo não fosse o fim da minha existência, mas seu desperdício. desperdiçar a vida me parece ser a pior morte possível, aquela que evito, a única sobre a qual desejo exercer algum poder, algum controle.
no último ano, lutei de forma feroz contra uma depressão que tentou, com todas as forças, me fazer desacreditar que havia motivos para continuar vivendo. o que ela desconhecia é que há muito eu já não acreditava em motivos para isso. viver é um absurdo tremendo, um acaso completo, e é precisamente isso o que me importa, é o que me faz querer continuar: a incerteza da experiência, a dúvida do que virá a seguir, a incapacidade de compreender a maior parte dos porquês.
quando cruzo a consolação e me sento na padaria para escrever essas palavras, o faço movido pela curiosidade de saber onde vou parar. assim como a maioria dos meus textos, este não foi planejado. eu sabia sobre o que queria escrever e tinha a vaga ideia de começar narrando um machucado (de forma muito mais gráfica do que acabei fazendo, no entanto), mas era só isso. não tinha ideia de que resumiria meu pensamento em três ideias, nem que abordaria a depressão, por exemplo. não imaginava que essa seria uma prosa longa e não um poema — gênero que, hoje em dia, domino muito mais.
penso, inclusive, que a natureza truncada, fragmentária, desse texto diz muito sobre minha capacidade de resumir a experiência de estar vivo e de amar viver. seria impossível, para mim, fazê-lo de forma mais objetiva, porque não há objetividade nenhuma nisso. é claro, eu poderia enumerar que gosto de praias, que amo a minha terra de origem, que sinto saudade de pessoas a quem evito, que acordo cedo porque tenho medo de não aproveitar o dia por inteiro… tudo isso é verdade e serviria bem para exemplificar por que vivo, mas nada conseguiria explicar esse porquê. então, não importa.
a vida me é indissociável do mistério que a rodeia, daquilo que não conseguimos colocar em palavras — o que nos impulsiona a viver para, somente então, saber.
é isso o que quero dizer quando digo que “se um dia a vida foi ruim, não foi comigo”: como pode ser ruim algo que, desde pequeno, me dá mais perguntas do que sou capaz de responder? como pode todas as dúvidas sobre se estou escolhendo certo, se meu próximo passo é o que de fato deveria tomar, etc., serem algo aquém de uma dádiva?
o mistério nos impulsiona a experimentar e a experimentação nos leva a viver. o sofrimento de estar vivo — duvidar, questionar, se arrepender, mudar o curso — é, então, a própria beleza, à qual almejo me unir. à qual irei me unir, que me destruirá por inteiro feito as hecatombes que inventamos, feito anuncia a profecia de cada novo nascimento: “veja, mais um de nós chegou. mais um a descobrir o mundo. que seja uma vida feliz”.
se isso não é bom, duvido que valha a pena saber o que pode ser.
uma música
a música que eu gostaria de dividir com você hoje é sentado à beira do caminho, do roberto e erasmo, na voz de arnaldo antunes e luedji luna. ela fica aqui como um oi e um agradecimento à isadora, que deu vida a este texto.