o verão avança. é preciso ter ódio de tudo o que termina.
na boca, o cigarro. o beco atrás, as pessoas transitando pela rua sem se saberem ali, perdidas entre nomes, afazeres, parcelas do cartão de crédito. o cigarro fica. segundos, minutos. na mente, um bloco de carnaval de lamentações: nada do que foi dito foi feito; ainda é preciso dizer muito mais. o cigarro se apaga, só resta o filtro. o fim vem em migalhas.
as nove horas batidas pelo sino da igreja me acordam do transe. pé ante pé, caminho pelo passeio, o rastro da fumaça serpenteando atrás de mim. ainda há tanto. se há, deve haver também uma forma de retornar ao passado, retomar os erros para desfazê-los, ampliar o horizonte da mágoa para extraí-la dele. sou, sim, afeito ao drama, mas também à verdade. gosto de dizer que apenas à verdade.
a rua de casa desemboca num “L” muito oblíquo. chego, entro, sento na poltrona da sala, olho para o relógio na parede. bebo água. ainda é cedo para álcool ou algo mais. os nós dos dedos ardem, como se impelidos a agir. não quero agir e quero agir. estou entrevado num presente mal feito, refém das circunstâncias e da dúvida. o nome que tenho é tudo o que posso, mal me cabe na boca outra palavra. estico a mão para pegar o telefone. os dedos paralisam nas teclas, antevendo o silêncio. como sabe ser bela a dúvida.
“alô?”
“alô”
sou um homem burro e visto roupas que combinam comigo. entre hoje e a lápide há uma história sendo escrita e ela me parece estranha. algo transborda de dentro de mim e se transforma em sons — só sabemos o que sabemos dizer; qualquer coisa que exista e esteja além da palavra não faz diferença.
meus cabelos são imundos porque vivo na cidade, tudo o que pisa o asfalto é sujo de alguma forma (apesar disso, não ligo). na cidade onde nasci, as cachoeiras cantam a música inerte da água. quando pequeno, pensava em cachoeiras como coisas estáticas, mas fui entender que uma queda d’água é uma ampulheta onde o tempo escorre sempre para a frente. o tempo: movimento fantasiado de horas.
acendo outro cigarro e não faço sentido, eu sei, mas sou um homem burro: às vezes, digo isso porque me apaixono pela verdade; outras vezes, para me livrar do peso de saber mais que o básico. meu pai e irmãos são homens burros e tendo a pensar que nenhum de nós gosta de ideias, mas ficamos de quatro diante de atos.
depois do verão vem o outono, que é quando as coisas caem. no inverno, as coisas derretem, assim como no verão, mas dessa vez para darem lugar à primavera. falo sobre a aparência das estações porque tenho muito medo de falar sobre a violência por trás delas, embora um dia espere empunhar armas melhores, deixar de ser um homem burro, tomar o ano pelo pulso e, numa guerra sistólica, rasgá-lo em veias de cabo a rabo com uma lâmina tão afiada quanto minha vontade de viver a vida ao avesso. de ver o dia por dentro. beber o suor da noite. parir um filho com o coração do tamanho de um sol.
um filho que não me vista na pele feito roupa, como visto meu pai. um filho que me redima e prove ao mundo que sei matar tanto quanto sei criar a vida e que uso minhas mãos também para dar fim a ciclos. um filho que avance, imponente, feito um cavalo de guerra, feito…
“o que você quer?”
um verão eterno.
isso tá absurdo!