em 25 de abril, meu pai completará oitenta e dois anos de vida e cinco de morte.
nem sempre nos entendemos. quase nunca nos entendemos. não porque havia entre nós muitos conflitos (fui ensinado desde muito cedo a ser um filho obediente), mas porque a distância que separava nossos mundos só podia ser transposta pelo afeto e esse nunca foi nosso forte.
uma das maiores lembranças de intimidade que tenho com ele é meu pai de cócoras ao meu lado na entrada de casa, terminando de me fazer um monjolo de brinquedo. o google o define como “engenho rudimentar, acionado à água, para pilar milho e descascar café”. aquilo que ele tinha nas mãos, no entanto, não podia pilhar nada. era feito de cana seca — que crescia em abundância no ribeirão em frente à nossa casa — e tinha a força de uma criança fraca, como eu era.
meu pai me ensinou o funcionamento dos monjolos, como a água que bate na sua parte traseira levanta o pilão à frente, que cai então com violência sobre o que se deseja partir. me entregou o brinquedo e me deixou ali, entretido com a miniatura de um objeto que fora parte da sua vida, do seu trabalho, muitos anos antes de eu surgir no mundo.
é uma lembrança bonita. sempre vou guardar comigo a sensação de brincar com um pedaço da vida de meu pai, me dado por ele.
tenho muitas outras memórias dele, nem todas boas, é claro. de todas gosto. certa vez, descrevi meu pai como “um homem vermelho”. na infância, naqueles exercícios da escolinha que nos pedem para desenhar nossas famílias, pessoas importantes para nós, eu sempre o pintava de vermelho — era assim que enxergava sua pele. é assim que a vejo até hoje. tenho dificuldade de pensar nele como um homem branco, feito eu, talvez porque o branco tenha para mim um ar de vulgar, de mundano, e meu pai seja tudo menos desse meu mundo.
a cor vermelha parecia fazer sentido com sua origem, na terra de mesma cor da cidadezinha interiorana onde nasceu, que tantas vezes visitei enquanto crescia. a ruralidade sempre foi uma marca constante na nossa relação e, arrisco dizer, a mais importante. os costumes da roça, o palavreado, as crenças sobre o que é e não é ser homem — tudo isso me tornou quem sou e quem me rejeito.
meu pai sempre foi um homem de hábitos violentos e de muito barulho: me tornei alguém que usa o silêncio como arma. ele sempre usou a palavra para impressionar ou ferir: aprendi a me defender dela empunhando-a primeiro. etc.
sempre tive dificuldade de dizer “papai”. não me lembro de tê-lo chamado assim de forma espontânea e as vezes que o fiz forçadamente são muito recentes. contrariamente, chamo minha mãe de “mamãe” até hoje. com ela, criei um vínculo forte e perene que me moldou pela sua presença, da mesma forma que meu pai me moldou na sua presença-ausente. sempre quis, no entanto, chamá-lo de “papai” e hoje penso se ele gostaria de ouvir, se entenderia o que a palavra de fato significa — um reconhecimento da nossa pequenez, mesmo adultos, diante da figura dos nossos pais.
hoje, chamá-lo assim não faz diferença. na verdade, é algo a ser evitado, uma expressão que lhe enche de dúvida sobre quem é. há cerca de cinco anos, meu pai começou a perder a memória. ele, que sempre me pareceu certo de si de uma maneira que sei que nunca serei, não se lembra mais de muita coisa e, dentre elas, está o fato de ter cinco filhos. chamá-lo de “papai” se tornou, portanto, uma afronta à sua nova identidade. finalmente, aquilo que ele sabe sobre si parece estar se alinhando à forma como sempre se comportou diante de nós, seus meninos.
somos cinco, todos homens, e já imagino que você tenha perguntas. não pretendo falar aqui sobre como foi crescer em uma casa repleta de tantos homens que acreditavam — e ainda acreditam — na mais bruta masculinidade. quero apenas dizer que foi como ter cinco pais, porque até hoje chamo de pai tudo o que é estupidamente masculino e meus irmãos foram ensinados a ser estupidamente masculinos. eu, o menino mais novo, filho de um segundo casamento e com sete anos me separando de meu irmão mais próximo, cheguei atrasado às aulas e aprendi tudo isso pela metade.
desde muito jovem me entendo como um homem queer. aqui, isso quer dizer um homem que sente atração também por outros homens, além de mulheres. embora saiba disso há muitas décadas, só há poucos anos fiz algo a respeito e abracei minha sexualidade como parte integral da minha vida, personalidade, escrita e romances. sobre isso, meu pai pouco — nada — sabe, porque vesti meu verdadeiro rosto só depois dele já não reconhecer mais o seu. não pude dizer a ele quem sou, quem ele criou. não sei se reprovaria, se tentaria me dissuadir de amar outros homens; não sei se eu me importaria com isso, se lutaria contra mim ou contra ele. essas dúvidas não mais me consomem, mas ainda existem, e embora eu não seja guiado por elas, sei que estarão aqui até que eu me vá. não saber, não poder ou não querer dizer a meu pai quem realmente sou parece ser o preço que pago por me amar como quero.
em 2020, nossas vidas e a de tantos outros foram suspensas pela pandemia. eu já vivia há muito em são paulo e ele continuava em belo horizonte, cidade para onde tínhamos nos mudado na minha adolescência. para amenizar as saudades, falava com meus pais diversas vezes na semana por telefone. à época, ele ainda estava são, mas o isolamento intensificou os sinais da demência diagnosticada anos atrás. quando finalmente revi meus pais, diversas doses de vacina e meses depois, ele já não era a pessoa de quem me lembrava de antes da pandemia. às vezes, tinha dificuldade de me reconhecer. sentia ciúmes porque achava que eu estava em casa para cortejar minha mãe. meu pai, um freudiano tardio.
nos últimos anos, a demência se aprofundou e passou a ser chamada pelo que de fato é: alzheimer. não há cura. nós, seus filhos, damos a ele o carinho e o cuidado que podemos e que a medicina permite, mas os medicamentos e terapias disponíveis apenas melhoram sua qualidade de vida, diminuindo a irritação e os momentos de crise, mas pouco ou nada fazem para recuperar a memória de longo prazo. meu pai não se lembra mais dos nossos nomes, nem de onde mora, ou da sua história verdadeira. acessa, como pode, fragmentos das lembranças para compor uma nova história, revivendo figuras que há muito se foram, recriando lugares que já não existem, e mesclando tudo isso ao seu entendimento do mundo.
ele é a segunda pessoa que perco para essa doença. em 2017, minha avó se foi, após mais de uma década tendo perdido a queda de braço com o alzheimer. sua deterioração foi mais agressiva que a de meu pai, em parte porque os tratamentos disponíveis à época não eram tão avançados quanto os que temos hoje. em seus últimos anos de vida, não se desgrudava de uma boneca de plástico que tratava como filha, mas não da forma que uma mãe faria, e sim como fazem as crianças em brincadeira. no processo de perda do seu eu, se reencontrou com a menina que foi.
me pergunto se isso ainda acontecerá com meu pai. se viverá o suficiente para o vermos retornar à sua identidade de menino — e qual será ela. será que, quando criança, era curioso como fui? será que tinha dúvidas parecidas? ainda sabia abraçar?
curiosamente, quanto mais envelhece, mais carinhoso meu pai fica. hoje em dia, apesar de não entender quem sou, associou ao desconhecido meu apelido de infância e toda vez que me vê espera um abraço, que me retribui, desajeitado, como se fosse algo que não deveria fazer, sendo homem. ainda assim, espera esse abraço toda vez que o visito e — diz minha mãe — reclama quando demoro a ir.
toda vez que falo com ele ao telefone, meu pai me pergunta quando vou visitá-los. no começo, eu dizia as datas certas. depois, passei a responder sempre “na semana que vem”, ao perceber que essa mentira o deixava feliz.
há poucos meses, ele passou a me perguntar se toco algum instrumento musical. tanto ele quanto meus irmãos são íntimos da sanfona, do violão, teclado e muitos outros. sou o único que não sabe tocar nada. “só toco galinha”, respondo, quando me faz a pergunta, e ele sempre ri. rio também, mas no fundo sinto um incômodo que demorei a saber traduzir em palavras e agora entendo como a sensação de não conseguir estabelecer, por meio da música, a mais íntima conexão com meu pai.
desde que me entendo por gente, a música faz parte da nossa história. quando moço, meu pai era conhecido em sua cidade pelo jeito com a sanfona. animava festas, alegrava bares e usava do seu dom — descoberto na infância e, segundo ele, desenvolvido sozinho — para conquistar inúmeras mulheres. para nós, seus meninos, a música sempre foi um instrumento da conquista, um poder emancipatório que nos tornaria os homens que esperavam que fôssemos. não sei se não aprendi a tocar pela rejeição a essa masculinidade ou simplesmente por nascer muito tempo depois da época em que meus irmãos aprenderam, meio que juntos. mas sei que nunca tive real interesse na coisa, apesar de (confesso em segredo) levar jeito.
até hoje a música acompanha meu pai. são raros os dias em que não passa a mão na sanfona e dedilha uma canção que embalava suas noites décadas atrás. nunca se esqueceu de nenhuma letra ou acorde.
três outros elementos se somam à música para compor a imagem que carrego dele: o café, a bebida e o cigarro.
quando pequeno, o café era rotulado na nossa casa como “coisa de adulto”, mesmo que sempre tenha sido excessivamente açucarado. lembro do hábito estranho de meu pai lavar os óculos no café — dizia que era ótimo para limpá-los. quando ganhei meus primeiros óculos, repeti o ato e fiquei com os olhos cheirando a café durante muitos dias.
a bebida sempre foi parte de quem ele era. faz uns vinte anos que parou de beber, mas toda a minha infância foi marcada pelas mudanças bruscas na sua personalidade quando se excedia na cerveja ou na cachaça. não foram raras as vezes em que chegou bêbado em casa e me tirou da cama, me sentando na mesa da cozinha, onde passava a madrugada dando lições de moral. nunca foi agressivo comigo, nem me lembro de ter sido agressivo com meus irmãos, mas tenho a lembrança de uma única vez em que, ainda criança, me interpus entre minha mãe e sua mão. o medo que senti naquela noite, da violência nascida das coisas que amo, me segue até hoje.
seus ensinamentos noturnos eram muitos: sobre mulheres, principalmente, e como eram ardilosas (“cuidado com a sua mãe”, repetiu muitas vezes, insinuando o perigo que eu corria ao ser protegido por ela). também falava muito sobre o que significava ter sucesso (“o homem sem dinheiro fala sem coragem”). sobre a coragem como o grande motor da vida (“tenho medo de ter medo”).
eu ouvia tudo com um misto de admiração e sono. não acreditava no que ele dizia, mas me admirava que quisesse me ensinar tudo aquilo, que reservasse um tempo só para nós. tirando a vez em que me fez o monjolo de brinquedo, esses foram os momentos de maior intimidade que tivemos.
o cigarro o acompanhou por mais tempo que a bebida. sobre isso não tenho muito a dizer, apenas que parou de fumar inúmeras vezes no decorrer dos anos (“paro quando quero”) e que, pouco antes da demência se acirrar, voltou a fumar como ato de rebeldia, diante das limitações que começávamos a impor na sua locomoção e liberdade, para sua própria proteção. não sei se parou deliberadamente de fumar uma última vez ou se simplesmente se esqueceu de fazê-lo.
já escrevi muito sobre meu pai — contos, poemas, um livro —, mas poucas vezes chorei por ele. quando criança, antes de dormir, costumava pensar que um dia minha mãe morreria e chorava muito por isso. nunca fiz o mesmo por ele, talvez pelo espaço entre nós nunca ter sido ocupado por grandes sentimentos, talvez porque sempre entendi que a relação entre pai e filho nunca deveria ser mediada pela tristeza. pela força, sim — pela capacidade de sobrevivermos a nós mesmos.
o momento em que escrevo este texto é um dos poucos nos quais chorei por ele. quando o comecei, tinha a ideia de que essa seria a narrativa de como, em 2020, ao perceber que o alzheimer avançava, decidi viver em vida o luto por meu pai — da mesma forma que vivera, anos antes, o luto pela minha avó. naquele ano, considero que o matei dentro de mim, para poder sepultá-lo com as honras devidas enquanto ele ainda era ele. quanto mais escrevo, no entanto, mais percebo que não falo da morte, e sim como o luto conseguiu, finalmente, fazer brotar em mim sentimentos que nunca pensei poderem germinar neste corpo-chão que ele me deu. percebo ter nascido um amor que por muito tempo acreditei não estar aqui, uma presença de meu pai em mim que é maior que toda a ausência e distanciamento que a vida nos legou.
na época em que decidi que deveria me despedir dele, escrevi uma carta dizendo tudo o que estava entalado. nunca a li para ele, nem nunca a enviei. ela existiu à época como um ponto final. hoje, existe como uma âncora a me ligar à história da nossa intimidade, ao legado das suas memórias, que persistem em mim enquanto homem e filho.
no ano em que matei meu pai, essas foram minhas últimas palavras para ele1:
estou te escrevendo esta carta porque o futuro reserva para as palavras que você tanto amava o pior dos destinos, a desimportância, mas o peso do menosprezo não deve ser aplicado àquilo que a gente tem a dizer um ao outro.
estou te escrevendo esta carta porque pensar que o erro foi meu me arrepia a espinha e me faz questionar o que foi que vivi durante todo aquele tempo. quantos dias passei distante? quantas noites fingi cansaço? se soubesse responder, responderia, mas, como tantas outras coisas, isso eu também não sei.
estou te escrevendo esta carta porque estamos em 2020, o ano em que você foi morto, o ano em que tenho trinta. nem mesmo eu aguento mais ouvir falar de mim, não aguento mais ver as sombras da sua sombra ganharem força sob a luz da sala de estar. não sei como me virar e o ar nos meus pulmões sai frio pelas narinas, um contrassenso fisiológico que não consigo explicar.
estou te escrevendo esta carta na esperança de que os vivos aprendam a ler, então, te conto aqui o que a saudade fez de mim e o que nunca te disse tão abertamente assim:
os dias sem você são imensos, pai, e nessa imensidão que só não é maior do que era o seu abraço eu me perco. a única forma de me encontrar é voltando ao começo, percorrendo o limiar da sua ausência, como o menino que corre pela beira da calçada antes da hora do jantar. no crepúsculo do dia, me apago feito o sol e observo a extensão do meu desprezo, os dias todos que passamos longe pela minha falta de apego, a sua voz a me chamar à distância, enquanto eu evitava conversas e respostas, perguntas e conselhos.
meu maior medo sempre foi não caber apenas em mim e precisar dos outros pra me fazer inteiro, mas hoje sei que sou apenas uma parte sua que deixou seu corpo e vaga, sem rumo, por tudo o que é mundo e tudo o que é vida e tudo o que é história. sou a memória de metade do seu rosto, o brilho de um dos seus olhos, um resquício da melhor parte do seu sorriso. cópia parcial e imperfeita dos seus trejeitos.
estou te escrevendo esta carta porque queria finalmente te dizer que em mim, de completo, só existe o orgulho, que me reflete feito espelho, herdado do sangue do seu sangue e dos ossos dos seus ossos e da carne da sua própria carne. o orgulho de ser um pedaço seu.
às vezes, penso que escrevo para exercitar o esquecimento, assim como, talvez, meu pai bebesse para exercitar o esquecimento. dessa vez, no entanto, escrevo para me lembrar de quem fomos — sendo indissociável a memória dele da minha.
escrevo para entender meus contornos, o que em mim sou eu e o que tomo de empréstimo dele.
escrevo para compreender a dimensão da minha dívida e como — finalmente — posso pagá-la.
escrevo para não me esquecer, para sentir saudade, para me dizer que tudo valeu a pena e fizemos o que pudemos. que ele fez o que pôde. que ficou tudo bem.
leia mais do que escrevo
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esta carta foi originalmente escrita em 2017 e atualizada com o passar dos anos, até chegar à versão que existe agora. no começo, fantasiei o ano da despedida, ora jogando-o para o futuro, ora para o passado, numa tentativa de me distanciar do acontecimento iminente. quando chegou 2020 e o processo de luto por meu pai teve início (ou se acentuou), revisitei-a e a transformei na despedida definitiva entre nós. desde então, não houve um ano em que não a reli, na tentativa de entender se tudo fora de fato assim e se minhas palavras ainda faziam sentido. essa carta reflete a dinâmica da nossa história, indo e voltando no tempo como prenúncio e registro do fato último, carregando desde sempre o mais próximo possível da síntese do amor e da angústia de ter sido filho de meu pai da forma que fui.
Não consigo expressar o quanto me tocaram suas palavras. Quanta vulnerabilidade e força num texto só. Segurei as lágrimas algumas vezes. E que orgulho senti de ter tido a oportunidade de conviver um pouquinho que seja com uma pessoa tão sensível e gigante como você. Seu silêncio sempre disse tanto sobre a potência que é. Só não dizia mais do que o poder da sua escrita! Obrigada por compartilhar!
“não poder ou não querer dizer a meu pai quem realmente sou parece ser o preço que pago por me amar como quero”. lindo lindo, meu bem!