i.
desde sempre soube de três coisas: o céu é longe demais; a terra é excessivamente perto; e do espaço entre eles fazemos um inferno.
ii.
aos oito anos ganhei minha primeira bicicleta, não por mérito meu ou por esmero dos meus pais, mas por uma sobra no orçamento com a qual não sabiam o que fazer. aprendi, colateralmente, a associar o afeto às sobras e não é de se espantar que por tanto tempo tenha vivido tão bem delas.
iii.
as migalhas do excesso têm sido meu alimento e o combustível das minhas horas. guardo em mim a soma do que experimento e então regurgito — na forma de palavras e atos, olhares e beijos, suores e cuspe — a aflição de ser um homem atacado por bárbaros, sucumbindo às forças externas das sensações que lhe conquistam o corpo.
iv.
que gosto tem o desejo que nos nutre?
v.
foi aos oito anos que quase morri pela primeira vez. foi aos oito anos que toquei com os pés as águas do mar. foi aos oito que um espelho me convenceu que minha imagem não era minha, mas pertencia a outros, e eles me diriam o que dela fazer. toda vez que me vejo refletido, me convenço que meu corpo é cada vez menos eu e cada vez mais uma ideia.
vi.
o inferno é muito mais que um espaço, é também um reflexo do desejo alheio de recriar o mundo à sua imagem e semelhança.
vii.
há três coisas que jamais aprendi: nunca soube dizer não; nunca ouvi o que não soube falar; e nunca entendi que a vida é um fragmento, um caco ínfimo, como os que me furavam os pneus das bicicletas na infância. um caco que nos é enfiado no corpo para que sangremos nosso rastro no mundo.