oi, tudo bem?
esta é a última newsletter do ano. vou tirar o próximo fim de semana para recarregar as energias e entrar em 2023 feito Napoleão invadindo a Rússia no inverno (i.e. com mais audácia que bom senso).
os fragmentos de hoje são sobre uma das coisas que mais me importam: conexões. mais especificamente, são crônicas sobre afetos passados (aglutinados; nenhuma sobre uma só pessoa). nesta época de renovações em que tanto focamos nas páginas em branco, quis dedicar um pouco de tempo ao que já me escrevi.
bom fim de ano!
i.
chego ao fim deste ano ainda pego de surpresa pela inclemência de estar vivo. nada é fácil. à espera do meu café numa fila de shopping, tudo parece surpreendentemente simples, mas a facilidade de se pagar pelo que queremos só evidencia o quão difícil é pedir algo de que ainda não sabemos o nome. meu nome a atendente sabe; ela me chama por ele. o café é sempre bom, mesmo quando é ruim e aguado. onde há água, há vida, etc, etc. eu beberia outro copo desse, se não me custasse tão pouco.
ii.
no vale entre seus seios dormi pela primeira vez o sono dos justos e acordei para a vida dos proletários, ocupando minhas mãos ao te dar trabalho: meu corpo, uma máquina; seus músculos, o gulag onde me autoexilei. pela manhã, quis absolver a stálin. quis fazer as pazes com a ideia de que era preciso viver em guerra permanente em um único país. a paz já tinha ido longe demais; tinha exterminado todos os bons e sobráramos apenas nós. o imperfeito futuro que nos aguardava só poderia ser fruto da guerra — e eu carregava nas mãos o sangue de inocentes, o meu próprio sangue, e meus olhos eram como o do lince que espreita sua presa. meus caninos rasgavam a carne dos dias com uma força que eu desconhecia e o estômago digeria a vitória. todas as batalhas que travei em vida, venci. suspeito que, principalmente, venci aquelas em que fui derrotado: como deixar-te à margem da história do que era meu. tudo é agora interligado. na minha tão íntima cronologia de afetos, é agora o fim da época do que foi seu.
iii.
minha xícara é mais rasa
do que deveria,
não cabem nela
meus pesadelos,
não há o que dissolver.
em meio ao café que a habita
é preciso, talvez,
sonhar outros sonhos.
uma música
minha obsessão esta semana foi Dora / Saudade da Bahia, interpretada por Pedro dos Santos e Sebastião Tapajós, que usei como trilha de um reels no perfil do Instagram. a união desses dois sons complementares captou bem o clima peculiar do meu fim de ano.