esta é a primeira newsletter e me sinto na obrigação de explicar como ela vai funcionar:
eu não faço ideia.
tudo o que entendo sobre ela, por enquanto, é que será fragmentada, pequenos textos costurados em uma edição semanal. por isso, quase a chamei de outro nome, mas decidi manter o poesia à marginal para fazer link com o perfil que mantenho no instagram, onde publico textos ainda mais curtos.
obrigado por estar aqui. a julgar pelos textos desta primeira edição, essa vai ser uma experiência muito íntima para nós dois. espero que você continue acompanhando (e eu escrevendo) por muito tempo.
bom domingo! :)
i.
tenho transgredido barreiras. o que quer que me espere além desses limites me apavora, mas mesmo assim os cruzo. atravessar minhas linhas imaginárias tem para mim o gosto do gozo; é um tremor no corpo que se assemelha ao mais belo clímax — ou ao mais sujo deles, daqueles que alimentam a alma com fogo e fuligem, produtos daquilo que queimou (tudo, absolutamente tudo, está em chamas hoje em dia).
a imagem da santa que vejo em uma igreja se apresenta para mim como outro limite geográfico. me questiono se o oco da madeira guarda algo mais além de um necessário silêncio. o véu azulado da santa me é uma lembrança opressiva do passado — quero rasgá-lo com uma violência que mal sinto chegar. despir a imagem é sair do meu território, é desnudar um conceito (o sagrado) que me acompanha desde menino, deixar aquela fuligem entrar pelas frestas do pecado original para manchar a inocência da ideia de que é possível existir um mundo sem máculas.
na minha mente fica o manto dilacerado pela força do desejo. a razão, esse signo do despertar, usa os trapos para me construir uma cama onde poderei, finalmente, fazer repousar minhas vontades. descubro, com isso, que o sono me perturba tanto quanto o acordar. sonho com barrancos despencando pela força das águas. percebo que toda erosão é um ode a eros.
não há mais barragens que me segurem. os améns, que se erguiam feito muros, não passam agora de fermento para o pão de cada dia, que me dá forças para ser uma lança a trespassar corpos encruzilhados, muitos deles tão semelhantes ao meu que me questiono se tenho fodido espelhos.
(as barreiras que transgredi, é importante dizer, fui eu quem as fiz.)
ii.
todas as coisas têm data para vencer, mas nem todas elas foram feitas para subir em pódios.
essa frase me veio à cabeça enquanto procurava a data de validade de uma geleia de frutas. fiquei matutando sobre seu conteúdo a semana toda, na esperança de transformá-la em um poema, um texto curto, mas desisti. ela me pareceu ao mesmo tempo clichê e verdadeira demais, então parti em busca de outras obviedades que pudesse disfarçar como poesia e a anotei como lembrança de que a vida é, essencialmente, cafona.
iii.
a memória de minha avó tem voltado com frequência à minha mente. faz cinco anos que ela se foi e esses anos me parecem ter sido muito mais longos que de fato foram. é engraçado começar este parágrafo falando de memória, porque a ausência dela foi exatamente o que alongou os anos: o alzheimer, desde muito cedo, a retirou desse mundo e da minha rotina. nossa despedida foi muito antes que em 2017. tanto que, no ano derradeiro, não chorei. é claro que, como bom neurótico, me culpei por isso e tive que trabalhar o fato em terapia (ocasião na qual aprendi o conceito de luto antecipado, ou de luto em vida). percebi que tenho vivido muitos lutos em vida: sou uma velha carpideira que trabalha em período integral; por vezes, vinte e quatro horas sem descanso — inclusive nos fins de semana. aquilo que perdi e o que sei que ainda vou perder se misturam às horas dos meus dias feito argamassa. mesmo nos dias mais calorentos, sinto uma onda de frio arrepiar a epiderme das minhas emoções. uma das certezas que carrego é que, seja em vida ou após a morte, o luto sempre estará aqui. o que não quer dizer, é claro, que precise ser triste: às vezes, é indiferente; às vezes, se torna o sorriso sincero que sucede uma boa lembrança. o que quer que ele seja, me alivia saber que meu luto é inteiramente meu.
música da semana
essa semana descobri father john misty, cujo nome eu já conhecia, mas a música não. fiquei bem viciado em goodbye mr. blue, particularmente nos versos “when the last time was our last time / should’ve told you that the last time come too soon”, algo como quando nossa última vez foi nossa última vez, [eu] deveria ter te dito que a última vez chega cedo demais. e não é que chega mesmo?