as bombas continuarão a cair mesmo depois de suspendermos a força da sua gravidade
em que penso, talvez mais do que é saudável, na violência da palavra
olá, como estão as coisas?
não quero comentar este poema, ao contrário do que geralmente faço quando envio uma nova edição da newsletter (cada vez mais escassas, eu sei). escrevê-lo foi um exercício de dor e desapego do qual, na verdade, saí mais apegado aos sentimentos postos em ebulição dentro do meu corpo no último mês.
espero que o texto faça sentido para você e que o incômodo não seja apenas incômodo. acima de tudo, precisamos fazer dele um começo.
boa semana e obrigado por me ler.
tudo o que vivemos é culpa única e indivisa dos céleres pés de hermes trismegisto das suas mãos feitas de seda portátil lâminas serradoras de carne de seus cabelos pretos e castanhos ele o pai da palavra o homem-deus desgraçado que enfiou numa tábua num papiro ou papel letra atrás de letra e fez com isso um alfabeto inteiro um poema o primeiro texto a narrar uma guerra de cabo a rabo até que de cabul a rafá descrevessem os sons das bombas como se fossem o barulho no começo da manhã de um beija-flor palestino batendo as asas ao longo de seu corpo esguio tão forte quanto o próprio hermes trismegisto batia asas ao longo de seus pés e há de se dizer neste breve poema como se disse inúmeras vezes em tantas câmaras e antessalas através da história que o três vezes grande aquele que nos colocou nesta cilada não passava de um roubo da identidade do íbis mais belo de todos: thóth filho do coração de rá ou em outras versões que entre todas prefiro mais filho de si mesmo do que do sol o que indica que nunca teve um pai a lhe ensinar o que um homem faz porque todo deus sabemos é antes de tudo um homem e de toda deusa também é esperado que seja ou aja como um homem versada na gramática da violência que define como assolar cidades inteiras desfazer promessas trazer troia ao chão pela simples menção a uma cabeça de cavalo enlutada pela beleza de uma mulher e aos seus longos e cacheados cabelos dourados feito a luz de rá o deus sol mas aqui focamos apenas em hermes e na sua culpa numa alegoria fajuta para falarmos do chão que treme em resposta à calamidade que é enclausurar num foguete o fim de um povo e chamá-lo de justa retaliação pelos muitos crimes cometidos que atribuímos a um único lado digo que a culpa é de um deus antigo por ter inventado a palavra porque não sei forma melhor de dizer que aquilo que nos assola se deve aos verbos mal flexionados aos adjetivo espalhados nos corpos errados aos substantivos nomeando lugares no mundo que jamais precisaram de nomes que nunca precisarão de donos sim tudo o que nos assola as lembranças que permeiam a história foram registradas com tinta feita de fumaça estilhaço pó e sangue em livros muito longos livros longos demais e me pergunto hermes te pergunto: se não houvesse sido inventada a escrita nem a sabedoria nem os amplos salões onde se discute a justiça se nada disso existisse se ainda fôssemos meros animais e se eu ainda fizesse o que quero com o pescoço alheio sem temer que um ser além dos montes me julgue inteiro se pudéssemos hermes ser apenas o que somos sem a eterna esperança de nos tornarmos mais e melhores se a vida fosse ao mesmo tempo o real e o sonho ainda assim nos deixaríamos ser reféns das ideias que temos? ainda assim olharíamos para os outros de nós e veríamos cavalos gregos? penso às vezes que somos todos troia que estamos fadados a colapsar graças ao engenho alheio sem que paremos para pensar que a beleza de se iniciar uma guerra perdura no tempo porque um dia inventamos a memória porque desesperadamente desejamos contar o que nos acontece sem questionar a que senhor servimos ou qual verdade diremos ser a verdade e convencemos a nós mesmos e convenceremos aos que vierem depois de nós que aquilo que nos aconteceu foi mérito nosso e o que fizeram conosco um reflexo da inveja e com isso hermes com isso thóth com isso rá ísis inanna tiamat anu anshar nos esquecemos de tudo o que realmente importa e não cabe a mim dizer aqui logo no fim o que isto é eu não saberia dizer nem se estivesse óbvio nem se eu pudesse lê-lo nas páginas de uma antiga escritura não passo do produto do que meu povo soube ser em meio a tudo o que lhe foi tirado sou um urro um corte o mato cerrado a floresta em chamas os biomas encarcerados em jaulas extraviadas em meio a chuvas torrenciais no coração da colômbia sou o ápice do homem o mais baixo e vil dos meninos e aqui encerro tudo enquanto amarro os sapatos frente ao dia que me reserva trabalho aqui sepulto certezas e respostas para que depois as escavem de mim e digam: vejam como ele denunciou o horror vejam como seu coração doía por estar vivo enquanto ao redor tantos desapareciam ou digam qualquer outra ideia que tenham de mim que não serei eu porque nenhuma ideia sobre o que sou conseguiria descrever o que nem eu consigo nenhuma imagem do meu rosto ou corpo terá nela inscrita sequer um pedaço da verdade que me assola: hermes, se não houvesse a história, o que me restaria para contar?
a pintura que acompanha o post é a guerra, de henri julien félix rousseau.