poesia à marginal

Compartilhe isto post

as bombas continuarão a cair mesmo depois de suspendermos a força da sua gravidade

newsletter.eduardofurbino.com

Descubra mais de poesia à marginal

poesias e histórias curtas escritas por um mineiro entre as marginais dos rios pinheiros e tietê, em são paulo
Continue lendo
Iniciar sessão

as bombas continuarão a cair mesmo depois de suspendermos a força da sua gravidade

em que penso, talvez mais do que é saudável, na violência da palavra

eduardo furbino
23 de out. de 2023
9
Compartilhe isto post

as bombas continuarão a cair mesmo depois de suspendermos a força da sua gravidade

newsletter.eduardofurbino.com
Compartilhar

olá, como estão as coisas?

não quero comentar este poema, ao contrário do que geralmente faço quando envio uma nova edição da newsletter (cada vez mais escassas, eu sei). escrevê-lo foi um exercício de dor e desapego do qual, na verdade, saí mais apegado aos sentimentos postos em ebulição dentro do meu corpo no último mês.

espero que o texto faça sentido para você e que o incômodo não seja apenas incômodo. acima de tudo, precisamos fazer dele um começo.

boa semana e obrigado por me ler.


tudo o que vivemos é culpa única e indivisa dos céleres pés
de hermes trismegisto das suas mãos feitas de seda portátil
lâminas serradoras de carne de seus cabelos pretos e castanhos
ele o pai da palavra o homem-deus desgraçado que enfiou numa
tábua num papiro ou papel letra atrás de letra e fez com isso um
alfabeto inteiro um poema o primeiro texto a narrar uma
guerra de cabo a rabo até que de cabul a rafá descrevessem
os sons das bombas como se fossem o barulho no começo da
manhã de um beija-flor palestino batendo as asas ao longo de seu
corpo esguio tão forte quanto o próprio hermes trismegisto batia
asas ao longo de seus pés e há de se dizer neste breve poema
como se disse inúmeras vezes em tantas câmaras e antessalas
através da história que o três vezes grande aquele que nos
colocou nesta cilada não passava de um roubo da identidade
do íbis mais belo de todos: thóth filho do coração de rá ou em
outras versões que entre todas prefiro mais filho de si mesmo do que
do sol o que indica que nunca teve um pai a lhe ensinar o que um
homem faz porque todo deus sabemos é antes de tudo um homem e
de toda deusa também é esperado que seja ou aja como um homem
versada na gramática da violência que define como assolar cidades
inteiras desfazer promessas trazer troia ao chão pela simples menção
a uma cabeça de cavalo enlutada pela beleza de uma mulher e aos
seus longos e cacheados cabelos dourados feito a luz de rá o deus sol
mas aqui focamos apenas em hermes e na sua culpa numa alegoria fajuta
para falarmos do chão que treme em resposta à calamidade que é
enclausurar num foguete o fim de um povo e chamá-lo de justa retaliação
pelos muitos crimes cometidos que atribuímos a um único lado
digo que a culpa é de um deus antigo por ter inventado a palavra
porque não sei forma melhor de dizer que aquilo que nos assola
se deve aos verbos mal flexionados aos adjetivo espalhados nos
corpos errados aos substantivos nomeando lugares no mundo
que jamais precisaram de nomes que nunca precisarão de donos
sim tudo o que nos assola as lembranças que permeiam a história foram
registradas com tinta feita de fumaça estilhaço pó e sangue em livros
muito longos livros longos demais e me pergunto hermes te pergunto:
se não houvesse sido inventada a escrita nem a sabedoria nem os amplos
salões onde se discute a justiça se nada disso existisse se ainda fôssemos
meros animais e se eu ainda fizesse o que quero com o pescoço alheio
sem temer que um ser além dos montes me julgue inteiro
se pudéssemos hermes ser apenas o que somos sem a eterna
esperança de nos tornarmos mais e melhores se a vida fosse ao
mesmo tempo o real e o sonho ainda assim nos deixaríamos ser reféns
das ideias que temos? ainda assim olharíamos para os outros de nós
e veríamos cavalos gregos? penso às vezes que somos todos troia
que estamos fadados a colapsar graças ao engenho alheio sem que
paremos para pensar que a beleza de se iniciar uma guerra perdura
no tempo porque um dia inventamos a memória porque desesperadamente
desejamos contar o que nos acontece sem questionar a que senhor
servimos ou qual verdade diremos ser a verdade e convencemos a
nós mesmos e convenceremos aos que vierem depois de nós que aquilo
que nos aconteceu foi mérito nosso e o que fizeram conosco um reflexo
da inveja e com isso hermes com isso thóth com isso rá ísis inanna tiamat
anu anshar nos esquecemos de tudo o que realmente importa e
não cabe a mim dizer aqui logo no fim o que isto é eu não saberia dizer nem se
estivesse óbvio nem se eu pudesse lê-lo nas páginas de uma antiga escritura
não passo do produto do que meu povo soube ser em meio a tudo o que
lhe foi tirado sou um urro um corte o mato cerrado a floresta em chamas os
biomas encarcerados em jaulas extraviadas em meio a chuvas torrenciais
no coração da colômbia sou o ápice do homem o mais baixo e vil dos meninos
e aqui encerro tudo enquanto amarro os sapatos frente ao dia que me reserva
trabalho aqui sepulto certezas e respostas para que depois as escavem de mim
e digam: vejam como ele denunciou o horror vejam como seu coração doía por
estar vivo enquanto ao redor tantos desapareciam ou digam qualquer outra
ideia que tenham de mim que não serei eu porque nenhuma ideia sobre o que
sou conseguiria descrever o que nem eu consigo nenhuma imagem do meu
rosto ou corpo terá nela inscrita sequer um pedaço da verdade que me assola:
hermes, se não houvesse a história, o que me restaria para contar?

a pintura que acompanha o post é a guerra, de henri julien félix rousseau.

9
Compartilhe isto post

as bombas continuarão a cair mesmo depois de suspendermos a força da sua gravidade

newsletter.eduardofurbino.com
Compartilhar
Anterior
Próximo
Comentários
Topo
Novo
Comunidade

Sem Posts

Pronto para mais?

© 2023 eduardo furbino
Privacidade ∙ Termos ∙ Aviso de coleta
Comece a EscreverObtenha o App
Substack é o lar para ótimas escritas