ao homem que dança sozinho no mundo aprendi a chamar de pai
em que falo sobre minhas más concepções de masculinidade e paternidade
i.
começou com uma coincidência. meses atrás, anotei em um caderno uma frase solta: “ao homem que dança sozinho no mundo aprendi a chamar de pai”.
revendo cenas de aftersun (2022), me deparei com aquela em que o personagem calum dança só ao som de losing my religion, do r.e.m., enquanto sua filha o observa. ali, éramos meu pai e eu; e era também o retrato da minha concepção de masculinidade: uma dança (ou o ato de voltar-se para o exterior) na mais completa solidão.
o masculino e o solitário se fundiram muito cedo para mim. na infância, entendi que ser plenamente homem me era impossível. sendo o mais novo de cinco irmãos, fui ensinado que ser homem era ser como eles e como meu pai: brutos, cheios de certezas, alheios a seus próprios sentimentos, inconsequentes em seus relacionamentos, héteros, normativos, infiéis, violentos.
a criança queer, inconstante e cheia de medos que eu era olhava para essas características com reverência, mas sabia também que elas não lhe pertenciam; que, embora quisesse muito, não conseguiria performar a masculinidade que lhe era ensinada. então, precisamente por causa disso, ser homem se tornou para mim uma dança solitária: uma autoexperiência, uma tentativa de encontrar algo no meu interior que pudesse amar tanto quanto meu pai e meus irmãos amavam uns nos outros aquilo que os fazia eles.
a solidão e o sofrimento dessa dança se adensaram com o passar dos anos, porque dentro da família de onde vim descobri ser impossível ensinar aos outros os movimentos que desejava explorar. precisei mudar de cidade, como tantos outros; precisei me culpar pelo abandono dos meus; precisei sentar em divãs e falar sobre a dor de não me entender um homem completo, já que o ideal da completude me tinha sido geneticamente determinado.
eu me entendia, quando muito, apenas como um pedaço daquilo que meus cinco pais eram. lutava para ser o todo, desejava que um espírito de violência se apoderasse de mim e destruísse tudo no meu interior que era um símbolo de fraqueza. ele jamais veio. na verdade, o que se apossou do meu corpo foi a paz da diferença; o sentimento sereno de ser um pedaço que nunca vai se encaixar e que entende que essa é sua natureza verdadeira; o entendimento que a completude não é o encontro do que nos falta, mas o fim da busca por respostas nos outros.
completude é abandono. isso me deu muito medo quando compreendi. é o abandono da busca incessante e da ideia de que há certezas; o abandono do medo de se perder ao se experimentar a vida. e é também abandonar nesse experimento aquilo que não nos serve mais, mesmo que ainda o amemos tanto, tanto.
volto a aftersun, à cena sobre a qual escrevi antes de vê-la e que motivou a newsletter de hoje. às vezes, o significado precede o significante. ao tatearmos nossas emoções, buscamos o signo do que sentimos e ele pode aparecer, dentre tantas outras formas, como luz em uma tela.
ii.
ainda represávamos tudo as águas indeléveis do desejo um monte de terra escavada de um terreno dentro do peito era particularmente difícil viver porque apesar da braveza ilimitada ainda não nos era permitido chorar e ser homem nessas circunstâncias visualizar-se na incerteza da falta era a dor de um músculo desconhecido e a coluna curvada apontava para algo a nos pesar sempre os ombros e ainda assim ainda não nos era permitido chorar contudo e acredito que exatamente porque tudo era exatamente assim ruiu-se o corpo como se parte uma represa e de onde o som não saía porque ao redor havia o vácuo ouvi pela primeira vez um canto ou um grito e de forma alguma me importei em distinguir o que era porque sabia o mais importante: havia sido ensinada a um homem a lágrima
iii.
meus cinco pais me ensinaram muitas coisas: que só mulheres e crianças têm tempo para o sensível, homens devem ser cruéis; que a nata do leite deve ser posta de lado, assim como o próprio leite — a única bebida lícita é a água, todo o resto é um desperdício obsceno; que o álcool é um desperdício obsceno, mas ainda assim permitido pela pequena moral, esse entre-gavetas onde nos prendemos em meio à cólera e à sua causa; me ensinaram que uma bandeira nada é sem um mastro, que carrego comigo uma espécie de mastro desde o nascimento e que devo invadir terras alheias cravando-o nelas com uma força colonial. não prestei atenção, mas ainda assim aprendi. descobri que não importa estar atento ou não à palavra, são os gestos que vemos que nos ensinam e, mais ainda, são aqueles que repetimos sem ver que nos fazem aprender o hábito do outro. hoje, no entanto, aprendo isto: é urgente esquecer.
iv.
este texto foi escrito anos atrás como uma tentativa de reconciliação. meu pai ainda vive.
estou te escrevendo essa carta porque o futuro reserva para as cartas que você tanto amava o pior dos destinos, a desimportância, mas o peso do menosprezo não deve ser aplicado às palavras que a gente tem a dizer um pro outro.
estou te escrevendo essa carta porque pensar que o erro foi meu me arrepia a espinha e me faz questionar o que foi que vivi durante todo aquele tempo. quantos dias passei distante? quantas noites fingi cansaço? se soubesse responder, responderia, mas, como muitas outras coisas, isso eu também não sei.
estou te escrevendo essa carta porque estamos quase em 2018, o ano em que três anos atrás você foi morto, o ano em que faço trinta. nem mesmo eu aguento mais ouvir falar de mim, não aguento mais ver as sombras da sua sombra ganharem força sob a luz da sala de estar. não sei como me virar e o ar nos meus pulmões sai frio pelas narinas, um contrassenso fisiológico que não consigo explicar.
estou te escrevendo essa carta na esperança de que os mortos aprendam a ler, então te conto aqui o que a saudade fez de mim e o que nunca te disse tão abertamente assim:
os dias sem você são imensos, pai, e nessa imensidão que só não é maior do que era o seu abraço eu me perco. a única forma de me encontrar é voltando ao começo, percorrendo o limiar da sua ausência como o menino que corre pela beira da calçada antes da hora do jantar. no crepúsculo do dia, me apago feito o sol e observo a extensão do meu desprezo, os dias todos que passamos longe pela minha falta de apego, a sua voz a me chamar à distância enquanto eu evitava conversas e respostas, perguntas e conselhos.
meu maior medo sempre foi não caber apenas em mim e precisar dos outros pra me fazer inteiro. mas hoje sei que sou apenas uma parte sua que deixou seu corpo e vaga, sem rumo, por tudo o que é mundo e tudo o que é vida e tudo o que é história. sou a memória de metade do seu rosto, o brilho de um dos seus olhos, um resquício da melhor parte do seu sorriso. cópia parcial e infiel dos seus trejeitos.
estou te escrevendo essa carta porque queria finalmente te dizer que em mim, de completo, só existe o orgulho, que me reflete feito espelho, herdado do sangue do seu sangue e dos ossos dos seus ossos e da carne da sua própria carne. o orgulho de ser um pedaço seu.
uma música
a música que eu gostaria de trazer aqui hoje é Pai e mãe, de Gilberto Gil. ela me acompanhou durante 2022 e a escutei, com carinho, enquanto editava esta newsletter.